Travesti: A vida em evolução e os enfrentamentos
Referência:
TRAVESTIS
( ENTRE O ESPELHO
E A RUA )
Autor: Hélio R. S. Silva
Editora: ROCCO LTDA
Contato com a editora: ( 21 ) 3525-2000 - Fax: (21) 35252001
rocco@rocco.com.br
Comentário: Dr. Paulo Branco
Eu decidi colocar
no meu site uma parte desta maravilhosa obra no sentido de colaborar com a
leitura das travestis que é tão carente de informações. Acho que a leitura de
todo o livro deveria ser feita para uma melhor compreensão da historia, dos
conflitos, rejeições e vitorias presente na vida das TRAVESTIS.
“ Mensagem: Toda diferença é preciosa é deve ser
ratada com carinho “ .
“ Um entre raro,
bizarro e enigmático tornou-se, nos últimos 40 anos, um tipo banal em nossos
dias. É verdade que ainda circula com certo resíduo de enigma, suscita-se
mal-estar sendo objeto de violência na tentativo de almentar os seus horizontes
sociais. Mas, já parece contar com um lugar na cidade, entre outros seres e
coisas tidos como bons ou maus. Quais as propriedades socioculturais do
processo histórico que retirou o travesti da órbita do espelho e o colocou
perante o olhar dos outros.
O travesti, antes
o espelho, limitava-se a produção de um ritual para si próprio, ou para reduzido grupo de amigos entendidos na
praia deserta. Só se tornava público na excepcionalidade do teatro ou do
carnaval. Um ritual que esboçava as possibilidades daquela virtualidade que a
educação interditava em qualquer situação, tempo ou espaço. Assim a sua
diferença em relação aos machos-homens e às fêmeas –mulheres era de grau, não
de natureza.
Universo que os
confinam. Aquele espelho, voyeurismo, fetichismo, teatro, carnaval, praia
deserta. Era época dos populares manuais de desvios sexuais. Com seu
descritivismo imobilizante.
Filmes sobre
travestis, autobiografias e entrevistas seguiam um certo padrão narrativo que incluía quase sempre:
1-
Uma referencia a família;
2-
O momenta da revelação da infância;
3-
Dificuldades, agressões sofridas, triunfos
e situações divertidas;
4-
Para as transexuais o momento culminante da
cirurgia.
UM NOVO PAPEL NA SOCIEDADE
Para entender o
novo papel, deve-se evitar o descritivismo produtor de fetiches, os cacoetes
etnográficos produtores do exótico, a postura folclorizante. Sua humanização
requer narrativas movidas por personagens, sujeitos sociais em pleno estado
dialógico e interativo, contexto detalhadamente exposto. E requer também a
reconstituição dos processos históricos, dos valores e praticas sociais de modo
a recuperar o percurso do travesti nas últimas décadas, interpretar os papéis
que lhe estão sendo atribuídos e localizar os lugares que lhe estão sendo
reservados.
O que há de novo
não é a travesti ou o transformista e, como já se viu, nem mesmo o transexual.
O que há de novo é a circulação desses personagens em intensa relação com a
sociedade abrangente. O travesti hoje no Brasil tem uma inscrição popular e
social como ator reconhecido e com o qual os circunstantes mantem relações
cotidianas, absorvendo, inclusive, seus valores e linguagem. Isso é novo. Isso
reverte o quadro histórico. Social e solar, o travesti continua a falar de nós
todos, mas, sobretudo, a falar com todos nós. Não é mas refém de um sentido
noturno e inconsciente. Um novo sentido tornou-se a moeda corrente dos seus intercâmbios sociais,
sexualmente, esteticamente, fraternalmente.
Embora fruto
direto de solos oscilantes, a travesti fala agora de um lócus socialmente
constituído, politicamente conquistado, produzindo publicamente uma
possibilidade real de desvincular o papel social de qualquer amarra com a
biologia, a anatomia. Possibilidade que tem, entre seus horizontes possíveis, o
próprio questionamento da expressão “travestir-se” , se estendida em seu estado
de dicionário. Percebemos sob o objeto travestido que o sujeito desse disfarce
não anuncia apenas a si próprio. É, entre outros, sintoma de novos tempos.
Quando uma diretora
de um colégio estadual em Florianópolis afirma admitir travestis de bom
comportamento em seu colégio, quando moradores da lapa, no Rio de Janeiro,
distinguem entre os travestis que praticam a prostituição na área aqueles que são
recatados e os que são escrachados, essa possibilidade de distinguir o bom do
mau travesti indica o reconhecimento de um papel impraticável e impensável três
ou quatro décadas atrás. Além disso, vejam-se os proliferantes, shows de
transformismo, o sucesso das paradas gays hoje realizadas em várias cidades
brasileiras e, sobretudo, a inscrição popular e social como ator reconhecido e
com o qual os circunstantes mantêm relações cotidianas, absorvendo inclusive
seus valores e linguagem. Não mais hipnotizado ante o espelho, não mais embriagado
pelo carnaval, mas negociando seu papel ante múltiplos atores com os quais
interage, na cotidiana inscrição social para a qual sua transcondição lhe impõe
certos óbices e lhe reserva alguns trunfos imersos na sociedade. Nem
excepcional, nem patológico, dividi com vários atores sociais, entre eles
também outros travestis, o trabalho em
grupo da produção de sua identidade.
A relação de
continuidade entre o travesti histórico e o travesti atual implica reconhecer
algumas propriedades, como a solidão no primeiro e a socialização do segundo.
Distingue-se pelo caráter latente da primeira experiência e a expressão
manifesta da segunda.
Quando hoje os
travestis discutem em seus foros o direito à circulação e a seres admitidos em
espaços que tradicionalmente lhes eram vedados, o que está subjacente a essa
discussão é a mudança social. Um homem vestido de mulher, fora do carnaval,
seria imaginável ainda na década de 1950 e 1960. Sua própria circulação na rua
seria extremamente problemática. O que mudou para retirar do travestismo sua
dimensão escandalosa?
Essa questão
parece estar vinculada às revoluções na moda, às vicissitude do feminismo, aos
estertores agressivos do machismo, tudo a redefinir a própria noção do gênero.
Essa visibilidade
social do travesti promove uma experiência coletiva que redefine as
particularidades psicológicas em função das posições relativas ocupadas em um
campo social mais complexo. Daí, a
inadequação de uma caracterização psicológica do travesti em geral. Não se
trata mais do tempo excêntrico de uma família, antes do integrante de uma
coletividade que se incorpora simbolicamente à sociedade abrangente, apesar de
todas as dificuldades de integração social plena.
O dinamismo
inerente às experiências concretas cria possibilidades de leitura múltiplas e
matizadas da situação em que vivem, o que complexifica extremamente em seu
campo social de interação. Toda essa experiência, tal projeto transcorre, é
esboçado contra o pano de fundo do que se poderia chamar imprecisamente de
“machismo” , discurso machista. No avesso da experiência do travesti, sobretudo
quando os processos de vitimização se expõe em suas formas mais dolorosas, há
uma paradoxal sensação de que a ostentação de qualquer signo de masculinidade
implica desrespeito. Uma observação do guarda, de um motorista de taxi, de um
mecânico resvala muitas vezes, mesma quando emitida por quem convive e interage
com o travesti, para a indicação de uma superioridade, de uma desqualificação
do travesti.
Ao mesmo tempo, a existência
de coletividades organizadas de travestis com significativas redes de apoio que
se ramificam pela sociedade abrangente coloca por si só uma casuística fervura
sobre as bases do orgulho machista.
Por que tal ordem
está a produzir com tal frequência e em tal escala tantas experiências de
descontinuidade em relação a seus valores, pressupostos, pontos de honra etc.?
As representações
que aí se atualizam oferecem uma contraface ao machismo, que se exprime em seu
exibicionismo invertido, na maledicência de seus relatos sobre os manchões
e, sobretudo, na notável gravidade e
empenho com que revestem o projeto.
O SENTIDO DO PAPEL
Mensagem: A mesma pessoa. Não há diferença. Só o sexo é diferente.
( Orlando, no
filme, olhando-se nu(a) frente ao espelho )
Vista a transição
do espelho para o papel, resta uma interrogação sobre o próprio sentido deste
papel. O sentido do espelho parece óbvio em sua moldura geral, embora as
experiências ali refletidas contivessem densas complexidades psicológicas. Já o
sentido do papel não se aprisiona em fáceis caracterizações porque contém,
inclusive, imprevisíveis direções, esta outra acepção da palavra sentido.
Frase verdadeira: A inexistência pública é que
congelava o papel do travesti do passado. Ele pode ser complexo psicologicamente,
mas é pobre socialmente “ .
Comentário: Dr. Paulo Branco
Acho que a convivência que também tenho com os
travestis no tratamento das afecções proctologicas, já há algum tempo, me fez
observar que a falta da família, do colo, de uma convivência simples e
verdadeira socialmente os torna bastante carentes, transparente e vulneráveis
principalmente aos insensíveis.
“ O curioso é que os riscos que a sociedade abrangente
supõe cercar o contato com travestis são os menos importantes. A policia, o
roubo, a gilete, a agressão, tudo se torna débil e insignificante. Em primeiro
lugar, porque em áreas camponesas, em áreas de fronteiras e em certas áreas
urbanas, onde o conflito pelo controle do trafego se instaura, a repressão e a agressão eclodem
bem mais arrasadoras.
Em segundo lugar, porque, onde o travesti é perigoso
não é por ai. É lá de dentro. Em sua própria aventura existencial. Sua condição
é que fulmina. Basta lembrar o riso no canto da boca, irônico, mordaz, com
triplos sentidos. Profissional da mentira, mestre da farsa e da ilusão, este
tipo especial de travesti, o que se prostitui nas ruas, só sobrevive á custa de
um permanente estado de alerta, uma paranóia programática que não pode excluir
o fair play e a sedução, já que está ali para atrair e seduzir os passantes,
embora deva desconfiar de tudo que atrai.
Muitos travestis afirmam que não se sentem mulheres;
outros se sentem tão mulheres que aspiram, com decisão ou difusamente, a fazer
a operação transexual.
De qualquer modo, sejam quais forem as predisposições
a partir das quais os travestis vivem seus projetos existenciais, há subjacente
a toda a experiência o tentar passar por uma mulher. Em suas conversas, por
menos interessados que estejam em ser mulher, por mais conscientes da condição
homossexual, revela-se orgulho – em graus variados – quando passam por
mulheres, são tratados como mulheres. Parecer ou não parecer, eis a questão de
todo travesti, de um ou outro modo segundo se pense ou não como mulher. Questão
existencial que paira sobre o corpo, mas que só o corpo pode resolver.
Pensando-se mulher ou não se pensando mulher, o que os
outros pensam desta “mulher” é fundamental
na interação. Passar por mulher quando não é mulher é a suprema
realização da incoerência biossocial. Estabelecer uma tal conformidade entre o
macho e a mulher que uma Gestalt da incoerência se imponha coerentemente. A
busca da coerência seria possível aqui?
Ao defende-lo, defendemos a imaginação, a sexualidade,
aas infinitas possibilidades que nos reservam a carne, a sensibilidade e, até,
os tecidos a roçarem sobre peles, interpostos entre o corpo e a fantasia. Há
uma nudez no travesti: a do desejo, a da explicitação de uma relação harmônica
entre a fantasia e realidade, em torno da qual só os preconceituosos e desconfiados
desafinam.
A tensão inerente à construção do papel feminino, do
papel masculino, do papel do travesti e do papel do transexual. A acessório ou
fundamento, uns podem viver sua persona sexual como puro fundamento, não
importa se opte por determinações biológicas, ou sociais. Outros a vivem
enquanto fruição prazerosa, o que permite, por exemplo, inúmeros clichês,
dezenas de personagens de romance, teatro ou cinema, compostas pela mulher
frívola, a mulher vamp, o dândi, o almofadinha, o mauricinho.
Em alguns discursos correntes, a própria distinção
entre os sexos cria dominâncias especificas, claves moduladoras, princípios de
produção. No caso do travesti, as dominâncias centram-se nas idéias de real e
de truque, de funcional e aleatório, de pragmático e gratuito.
Se tudo é apenas papel, resta saber o grau de
coerência e envolvimento com que é vivido. Curiosamente, e aparentemente na
contramão da via aberta por esta consideração, há uma sensibilidade entre
travestis, provavelmente desenvolvida na prática do projeto trans, que lhes
permite reconhecer que tal pessoa não deveria fazer travesti ou que aquela
outra é um travesti ridículo.
A mentira no depoimento, na entrevista, no bate-papo
com o freguês é um dos recursos funcionais para a criação dessa mulher que se
persegue. Assim como tecidos, silicone, bijuterias, hormônios, também histórias
de amor, de viagens e de infância convocadas para a construção de uma mulher,
que é o corpo, que é forma de vestir, mas que também é uma cabeça ( mentalidade
) e uma história de vida, embora haja quem pense, a partir de um certo
positivismo travestido, que tudo isso é apenas uma questão de corpo e de
acessórios.
Contradições
O travesti já conta com aliados e auxiliares, entre
médicos, cirurgiões, farmacêuticos, patrões, familiares, ONGS, advogados,
saunas, boates, cabarés e pensões. Mas conta ainda com os debochados. Aqueles
que, por mais neutros e circunspectos, quando o assunto é travestis exibem
displicentes uma cara irônica. Exibição inconscientemente condicionada pelo que
sempre foi visto como caricatura, vivido como ridículo e considerado como
inconsequência.
Tanto o deboche quanto a violência parecem derivar,
contudo, de duas propriedades inerentes
à experiência travestida. Rudimentarmente carnavalesca e infantil em suas
expressões mais cruas e primeiras, ela provoca com muita frequência reações
viscerais de nojo, náuseas, pena, ódio, medo, indignação, e até mesmo
espancadores que segundo depoimentos de travestis-prostitutas, são
surpreendentemente na cama.
A tensão entre aceitável-rejeição social não encontra
um discurso publico que produza um antídoto contra as disposições arcaicas da
rejeição, como acontece com o movimento negro e o movimento feminista. O
movimento homossexual ainda não cristalizou um discurso que restaure
inteiramente inteiramente a dignidade do travesti. Existem boas intenções e
disposições simpáticas, que não escondem o desconforto que o vizinho suscita.
Talvez pelos motivos já expostos: o travesti se envolve nas engrenagens de um
jogo ao qual muitos assistem como se tratasse de fenômenos absolutamente
irrelevante, o que faz com que o preconceito se abata sobre ele sem qualquer
atenuante. O preconceito contra o preconceito parece sempre deixar livre algum
objeto sobre o qual a sociedade preconceituosa possa se manifestar
“livremente”, sem os freios da auto-censura , sem o olhar recriminador do
outro.
Talvez seja um dos raros preconceitos plenamente
articuláveis por intelectuais, embora de forma aparentemente benigna. Benigno
no sentido de que não se articula nenhum discurso contrário, não se exaspera em
condenações. Tudo se destila como risível, irrisório, irracional. Uma
irracionalidade menos, imprestável e irrelevante, cômica e caricata. É esse
senso de irrelevância que o transforma no portador de uma suave loucura, para
os intelectuais. Ou em óbices a respeitabilidade, para homossexuais.
O racismo, o machismo, o etnocentrismo são exercidos
em múltiplas latitudes. Mas, na parte delas, vozes se agitam, movimentos se
organizam, textos são escritos, condenando-os. Os travestis talvez
corporifiquem uma das últimas assim ditas minorias que não suscitam qualquer
protesto articulado contra a discriminação. Parecem não sensibilizar muito, no
sentido de que não parecem constituir uma causa séria.
Em geral, as conversas sobre travestis mantidas
durantes a pesquisa revelam perspectivas segundo as quais ou estaria
explicitando uma agressão à mulher, à sociedade, por um lado; ou, por outro,
expressaria a dificuldade em “assumir” o homossexualismo. Enfim, ou pretexto,
ou sintoma. A experiência assim se dissolve, tornando-se meramente
instrumental, seja em suas funções agressivas, seja em seus mecanismos
defensivo o que, de resto, permite a liberação de uma maliciosa curiosidade.
Uma excitação manifesta nas conversas, nos curiosos dos automóveis ou no
público das boates gays “ .
Nenhum comentário:
Postar um comentário